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Excelente resposta à reportagem da Galileu “Ratos de laboratório têm mais mordomias do que se imagina”

Por Robson Fernando de Souza - www.consciencia.blog.br

Na prática entrando na recente onda do conservadorismo científico em defesa da exploração de animais em pesquisas, a revista Galileu fez na última sexta-feira, em uma reportagem, sua parte em tentar convencer os internautas de que não haveria nada de mais em explorar cobaias nos laboratórios e biotérios. De linguagem “cool” e juvenil, o site visou “mostrar” aos jovens leitores de que a vida dos camundongos e ratos seria algo análogo a uma hospedagem em hotel de luxo, coisa que mesmo os seres humanos invejariam, num esforço alienante e manipulador que, visando perpetuar e naturalizar a escravidão animal perante a sociedade, ainda mais as gerações juvenis de hoje, deve ser denunciado e desmentido.
O texto, dividido em três páginas, já fala de “mordomias” e afirma que as futuras vítimas das pesquisas in vivo teriam mais “benefícios” em sua prisão do que o senso comum pensaria. Sabe disfarçar com denotações fantasiosas e atraentes a velha argumentação pseudo-bem-estarista de que as cobaias seriam “bem tratadas” sob “normas rígidas de higiene e conforto”.
Mas cai a ficha rapidamente para quem sabe que o grande problema não são simplistamente o “bem-estar” e a existência de crueldades explícitas, mas sim a escravidão, o tratamento de animais como coisas, mãe de todas as violências do laboratórios. Logo no primeiro parágrafo da primeira página, vemos referências à “produção” e preço em dinheiro de roedores, como se fossem objetos feitos para o usufruto por seus usuários, mercadorias dotadas de utilidade para seus compradores.
Nesse processo, a linguagem fantasiosa se mostra novamente, ao dizer que “os ratinhos que vão dedicar sua vida e morte à ciência são tratados como reis”. É uma dupla inverdade essa parte. Primeiro porque eles não dedicam nada, e sim são forçados a viver e morrer para fins utilitários que não dizem respeito a qualquer de seus interesses próprios de seres sencientes. Segundo porque a alusão aos “reis” é uma falácia de falsa analogia, visto que nenhum rei é considerado ser moralmente inferior, forçado a nascer e viver para uma vida de prisão em pequeno confinamento e de servidão, programado geneticamente para sofrer doenças tormentosas, torturado e morto para fins de duvidosa “contribuição para o progresso”.
Em seguida, a descrição de toda uma parafernália técnica para “armazenamento” e “manutenção” das cobaias: esterilização, ar-condicionado, restrição de entrada, indumentária especial, temperatura específica constante, troca de ar, luz baixa, barulhos extremamente restritos…
A reportagem tenta passar a imagem de que isso seria para “acomodar bem” os animais, fazê-los se sentir “confortáveis” ou mesmo “respeitar seu estilo natural de ser”. Quando se sabe, porém, segundo alguns dos próprios praticantes de vivissecção, que nada disso é feito propriamente em respeito às cobaias, mas sim para impedir a introdução de variáveis inesperadas ou fatores que poderiam interferir na pesquisa – como o estresse em vão, a contração de doenças ambientais e o sentimento de calor. Se houvesse ali um mínimo de respeito aos animais, eles seriam deixados livres e não seriam sequer tocados por qualquer cientista que na nossa realidade estivesse interessado em lhes causar dores crônicas, câncer, choques elétricos, medo, estresse proposital e tudo o mais.
E volta à falsa analogia ao dizer que “nos biotérios, os ratos são tratados com a mordomia de um hotel 5 estrelas”: confinar um ser senciente necessitante de liberdade num pequeno espaço, por mais confortável que seja, não é tratá-lo com mordomia e luxo, e sim aprisioná-lo. E não há qualquer regalia na vida de um ser que é forçado à prisão perpétua desde o seu nascimento e será torturado num experimento em poucas semanas ou mesmo poucos dias de vida.
Virando a página, a desfaçatez continua, nesse trecho: “Depois do tratamento VIP no berçário, onde passam dias ou até meses, os animais são recrutados para os laboratórios. Começa aí sua vida de aventuras e desventuras.” Deve-se responder a isso com o ressalto dos seguintes fatos:
a) Não passa pela cabeça de ninguém de sã consciência tratar uma Very Important Personaprisionando-a num quarto onde ela passará o resto de sua vida e torturando-a e executando-a nos seus últimos dias ou semanas de existência;
b) Esses “dias ou até meses” são nada menos do que toda a vida do animal exceto o período da pesquisa;
c) Esse “recrutamento” é feito de uma forma forçada que nem o serviço militar obrigatório é capaz de fazer. É equivalente às Forças Armadas criarem seus recrutas desde o útero, sem que haja qualquer possibilidade de eles sequer sonharem com uma vida civil, e executarem todos eles depois de terem participado de uma guerra ou uma missão de paz. Os vivisseccionistas, para explorar as cobaias, se aproveitam justamente da impossibilidade de elas recusarem ou aceitarem a “missão” a que são forçadas, impondo um “recrutamento” extremamente forçado;
d) As únicas “aventuras” que podem vir à mente quando se fala nelas são os “desafios em labirintos e piscinas”, que, dependendo do propósito do experimento, podem induzir sofrimento e danos físicos nos animais, considerando que, por exemplo, pode ser uma pesquisa para testar como ratos alcoolizados ou entorpecidos com drogas pesadas lidam com piscinas ou labirintos;
e) Detalhe para as “desventuras”, que, como os defensores dos animais sabem, podem ser toda a sorte de experimentos de tortura, como indução de câncer, entorpecimento com drogas ilegais ou álcool, inalação de fumaça, choques elétricos, provocação de medo e ansiedade, entre tantos outros tipos. Como esses animais podem viver uma vida de “mordomia” ou ser tratados como “VIPs” se têm esse destino e ainda no final são invariavelmente mortos?
E a segunda página é bem curiosa. Ela contradiz toda a linha de raciocínio do texto como um todo, ao, sem querer, denunciar que os roedores são animais muito assustáveis e estressáveis e qualquer estímulo sensorial, por menor que seja, pode causar estresse ou comportamentos bizarros (como a mãe canibalizar seus próprios filhotes). Destaque para os três trechos seguintes, que põem abaixo a história de que a vida das cobaias seria algo invejável pelos seres humanos:
“Quando a reportagem da Galileu visitou o Laboratório de Cronofarmacologia da USP, a presença de estranhos causou agitação. Os ratos davam voltas na gaiola e se escondiam. A irritação maior foi a de um deles, fotografado sozinho. Os pelos se arrepiaram, os “bigodes” passaram a se mexer muito e, em seguida, o animal teve uma súbita dor de barriga e fez cocô ali mesmo.”
“Quando uma pessoa perfumada toca um filhote, a mãe pode não reconhecê-lo — e acabar comendo a própria cria. Barulhos como música e conversa alta também podem ter final trágico. “Se alguém der um grito perto de uma fêmea de porquinho-da-índia prenha, ela pode até abortar”, afirma [a diretora de um biotério]. Por isso, os pesquisadores tomam o maior cuidado para não estressar os bichos.”
“Não é à toa que os ratos se escondem atrás da lata de lixo ou em bueiros. Eles temem espaços abertos e altura. Os cientistas aproveitam esse ponto fraco para fazer testes de ansiedade. Soltá-los em piscinas fundas, onde eles não possam se apoiar, é uma das formas de testar suas reações. Mas o brinquedo mais popular da medicina comportamental é o labirinto, usado na avaliação de ansiedade há mais de 20 anos.”
Mais adiante, o título de outra seção da reportagem – “Roedor sem dor”. Acaba levando o leitor mais atento à conclusão de que apenas alguns ratos e camundongos (os reprodutores e reprodutoras) vivem “sem dor”, enquanto todos os demais enfrentam danos físicos e sofrimento quando são feitos vítimas das experiências. Aliás, mesmo essa parte é posta em xeque num verdadeiro tiro no pé por parte de sua autora. Porque, se interpretarmos o título “Roedor sem dor” como algo relativo à preservação da integridade física da cobaia, a afirmação de que ela é invariavelmente morta por abate ou jogada às cobras destrói essa própria insinuação titular.
E sem falar na grave indução ao erro que esse trecho final da segunda página traz aos leitores. Primeiro porque trata a questão das pesquisas com animais com um tremendo reducionismo: é como se todo o universo de experiências in vivo se restringisse a fazer os roedores enfrentarem medos ou ingerirem bebidas alcoólicas. Segundo porque ignora que as cobaias não reprodutoras são sacrificadas, por motivos de biossegurança, depois da conclusão dos experimentos, e não quando estão idosas.
Além, também, da repetição, no trecho final dessa página, da desfaçatez que marca a reportagem: “Justo. Afinal, dedicaram sua vida ao bem da ciência e muitos deixam descendentes para seguir o trabalho.” Tanto porque julga “justo” que se assassine animais em nome de um método antiquado e antiético de ciência experimental, ainda mais depois que eles passaram por toda uma vida de aprisionamento seguido de tortura, como na afirmação de que “dedicaram sua vida” a algo que não aceitaram nem puderam recusar fazer – ser vítimas de experimentos que violaram sua integridade física, lhes causaram sofrimento e implicaram o fim precoce de sua vida.
E na terceira e última página, repete-se a manipulação que marcou a primeira: alusões às características de hotéis (“5 estrelas”, “mordomia”, “hóspedes”, alimentos “servidos à vontade”). Já falavam George Orwell e Tom Regan sobre essa estratégia de abordar de forma interesseira um assunto que demanda senso crítico. O primeiro falou doduplipensar, através do qual a manipulação midiática torna sinônimas duas ideias diametralmente opostas (guerra e paz; escravidão e liberdade; ignorância e força; no caso da reportagem, prisão e hotel, exploração e vida boa). O segundo, por sua vez, traz ao debate “a arrogância de Humpty Dumpty”: fazer com que a palavra ganhe o significado que a pessoa interessada queira que tenha (no caso da reportagem, “mordomia” significa ocultamente manter um animal aprisionado, privado de liberdade, por toda a vida e torturá-lo em seus dias finais).
Quem leu a matéria pró-vivisseccionista percebeu que a Galileu presta, com ela, um grande desserviço à ética, tanto animal como jornalística, e atrapalha muito a discussão cada vez mais polemizada sobre o uso ad aeternum de animais não humanos em experimentos científicos.
Por outro lado, mostra o equívoco que é tentar defender os animais não humanos com base apenas no desejo de que vivam em bem-estar. É esse reducionismo bem-estarista que acaba autorizando aqueles que vivem de explorar animais a fazerem o que bem quiserem com seus escravos, inclusive infligir-lhes claras violências, desde que ponham nessa exploração uma roupagem de “preocupação com o bem-estar animal”. Isso nos leva à conclusão de que a luta de quem se opõe à experimentação em cobaias deve ser não simplesmente pelo bem-estar, mas pela libertação animal, pelo fim de toda e qualquer forma de tratar animais como escravos.

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