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E por que não podemos nos indignar pelos animais?


Compartilhando este excelente texto que circulou nas redes sociais nos últimos dias em resposta às velhas e já conhecidas críticas que os defensores dos direitos dos animais escutam diariamente.

O cão, o garoto gay, o político corrupto

Original publicado no blog DEVIR e compartilhado por Viviane Alexandre

Dentre as incontáveis falácias argumentativas que se infiltram em nossos discursos, uma em especial merece toda nossa atenção e carinho: o falso dilema. Ou, como prefiro chamar, a falácia da falsa escolha. Ela sempre surge quando, no discurso falado ou escrito, alguém insiste ou insinua que duas opções são mutuamente excludentes. Trata-se de um recurso muito utilizado no jogo político, quando se tenta cooptar a população a fazer uma escolha entre A ou B, ainda que A e B não sejam as únicas opções reais.

Vale destacar, contudo, que as falácias argumentativas, sejam elas quais forem, não constituem necessariamente um procedimento intencional. A pseudológica se infiltra em nossa comunicação cotidiana, e mesmo o mais treinado dos filósofos pode incorrer em erro. Independentemente da intencionalidade, é sempre importante avaliar se um discurso é lógico. Trata-se da diferença entre ser ou não ser manipulado.

A estrutura do falso dilema é simples:

Ou A ou B. Se não A, logo B.

O senso comum aceita esta estrutura com bastante facilidade. Ela é totalmente falsa, entretanto.

Vamos a um exemplo real muito simples:

“Os paulistas são palmeirenses ou corintianos. João não é palmeirense. Logo, João é corintiano”

Notem que a estrutura seria válida, se de fato todos os paulistas fossem apenas palmeirenses ou corintianos. Mas não é verdadeira, pois existem paulistas santistas, flamenguistas, paulistas que não gostam de futebol e não torcem para time algum etc.

“Ou mantemos armar nucleares, ou seremos atacados”

Falsa escolha evidente: não ter armas nucleares não implica necessariamente em ser atacado.

Recentemente, por ocasião do vídeo que mostra uma enfermeira torturando e matando um cão yorkshire, viu-se uma comoção pública geral, em que muitas pessoas clamavam a importância de punir aqueles que maltratam animais.

É quase uma lei da natureza: sempre que alguém fala da importância de cuidar dos animais ou milita em prol dos direitos animais, surge alguém questionando por que as crianças de rua não são importantes, ou por que os militantes de direitos animais não se importam com racismo, homofobia, misoginia, ou [insira aqui a causa de sua preferência].

Trata-se de clara falácia do falso dilema:

Ou direitos animais ou direitos humanos. Alessandra escolheu direitos animais, logo não escolheu os direitos humanos.

Este argumento é totalmente falso. O fato de uma pessoa sentir mobilização para lutar pela causa dos animais não significa que ela não se importe com os direitos humanos (e vice-versa). Qualquer tentativa de insistir nisso é maldosa e não tem lógica nenhuma.

Ainda na ocasião do assassinato do yorkshire, vi algumas pessoas lembrando que ano passado um adolescente (Alexandre Ivo) foi assassinado por motivação homofóbica. Estas pessoas reclamavam que, na ocasião, não houve a mesma comoção. Aqui, é preciso ter alguns cuidados: 1. Será que não houve a mesma comoção? Como quantificar isto? 2. Ainda que não tenha ocorrido a mesma comoção, isso não invalida (ou não deveria invalidar) a indignação contra o assassinato cruel do yorkshire.

Em essência, a afirmação poderia ser resumida da seguinte forma:

“Ao invés de se indignar com o assassinato do cão, vocês deveriam se indignar com o assassinato do garoto gay.”

ou

“Ao invés de se indignar com o assassinato do cão, vocês deveriam se indignar com o fato de que crianças estão nas ruas, morrendo de fome ou fazendo trabalho escravo.”

A charge abaixo foi uma das que mais vi ser publicada dias atrás, tanto no Facebook quanto no Twitter:



Se A, então não-B = FALSO
Ora, não é verdade que quem se importa com animais abandonados não liga para injustiças sociais. Insinuações em contrário, ainda que engraçadas, são maldosas. O que acontece é bastante simples de entender: as pessoas, por motivações diversas, são mobilizadas com mais intensidade por algumas coisas.

Há quem sinta especial mobilização pelos direitos dos animais. Há quem sinta especial mobilização pela causa gay. Há quem sinta especial mobilização para lutar contra o machismo, o racismo etc. Uma coisa não exclui a outra, e não são os outros que devem determinar (sobretudo a partir de argumentos coercitivos e falsos) as causas pelas quais nos importamos.

Vamos voltar no tempo. Quando Alexandre Ivo (um garoto de apenas 14 anos) foi assassinado em decorrência de homofobia, vi um sem-fim de pessoas denunciando o caso, falando sobre a importância da criminalização da homofobia etc. Eu fui uma dessas pessoas. Foi sem surpresa alguma que vi algumas pessoas postarem argumentos de falsa escolha. Diziam elas: “a homofobia é um problema, mas é um problema menor. As pessoas deveriam se preocupar mais com a corrupção, com políticos corruptos”. Diante de um anúncio que conclamava as pessoas a marchar contra a homofobia, várias outras postavam: “por que não fazem uma marcha contra a corrupção?”.

Notem que este tipo de discurso não é – estruturalmente falando – nada diferente do que está implícito na charge que postei aqui. Se fossemos desenhar uma charge baseada no discurso “ou homofobia ou corrupção”, ela seria mais ou menos assim: de um lado, pessoas fazendo passeata contra a homofobia. Do outro, um político roubando a todos e ninguém ligando.

Mas por que lutar contra a homofobia implica em não ligar para a corrupção? E quem disse que militantes anti-homofobia não se importam com a corrupção? O que mede o “se importar”? Xingar muito no Twitter?

O fato é que, além da falsa escolha, somos acometidos por um tipo muito sinuoso de narcisismo. Achamos – perdão, fui delicado, na verdade nós temos certeza – que nossas escolhas, militâncias, atitudes são as melhores e mais importantes do mundo. E que o outro, seja lá quem for, não procede do “jeito certo” [evidentemente, o "jeito certo" é sempre o nosso].

Não me espanta, contudo, que o oprimido possa se converter em opressor, mas não deveria ser assim. Quem se lembra [eu lembro] das cobranças injustas que ocorrem sempre que se milita contra a homofobia, o machismo ou o racismo, não deveria fazer as mesmas cobranças injustas quando outras pessoas [por motivações pessoais e vontade real] militam pelos direitos animais.

Outro tipo de falso dilema é continuamente criado também por alguns militantes dos direitos animais. Vi alguns vegetarianos postarem que aqueles que se indignaram com o assassinato do yorkshire são hipócritas, já que comem carne de vaca, porco, galinha, peixe etc.

Notem o falso dilema:

Ou você é vegetariano, ou não se importa com animais. Alex não é vegetariano, logo ele não se importa com os direitos animais.

Há alguma verdade quando se diz que quem se importa com os direitos animais deveria, sim, se importar com vacas, porcos, peixes, galinhas. O fato é que não necessariamente as pessoas se importam com os direitos de todos os animais, mas tão somente com os animais domésticos, com os quais estabelecemos vínculos afetivos. Neste caso, ainda assim não é verdadeiro se valer do argumento do ou/ou. Trata-se de uma diferença de grau de importância, e este grau de importância é passível de ser expandido com o tempo.

O que fica saliente, em todas estas celeumas, é o poder de afastar possíveis parceiros de luta a partir de discursos maldosos. Falácias lógicas costumam ter poder intimidatório, mas dificilmente se revelam funcionais quando queremos convencer alguém de algo. Qualquer pessoa minimamente inteligente percebe que está sendo sacaneada, e ergue defesas naturais, ainda que não consiga localizar exatamente onde está o erro no argumento do outro.

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