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O caso dos direitos animais

Segue o vídeo com a fala de Tom Regan, uma das maiores referências atuais sobre direitos animais. Para nossa sorte, a professora Sônica Felipe se encarregou da tradução, a qual vem logo após o vídeo.



Tom Regan - Trad.: Sônia T. Felipe
Fonte: ANDA e Facebook

Considero-me um defensor dos direitos animais – como parte do movimento pelos direitos animais. Este movimento, conforme o concebo, é comprometido com uma série de fins, incluindo:

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a abolição total do uso de animais na ciência;
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a eliminação total da produção de animais;
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a eliminação total da caça esportiva e armadilhas comerciais.

Há pessoas, eu sei, que professam crer nos direitos animais mas não visam aqueles fins. A criação industrial, elas dizem, é errada … viola os direitos animais… mas a criação tradicional é legal. Testes de toxicidade em animais violam seus direitos, mas pesquisas médicas importantes… a pesquisa do câncer, por exemplo, não. O abate a pauladas de foquinhas é horrendo, mas não o abate de focas adultas. Eu costumava pensar que compreendia essa forma de raciocínio. Não o faço mais. Não se mudam práticas injustas, ajustando-as.

O que é errado … fundamentalmente errado… com o modo pelo qual os animais são tratados não são os detalhes que variam de caso a caso. É o sistema como um todo. O desamparo dos bezerros [vitela] é patético, de cortar o coração; a dor lancinante dos chimpanzés, em cujos cérebros foram implantados eletrodos, é repulsiva; a morte lenta e torturante do mão-pelada, cuja pata ficou presa numa armadilha é agonizante. Mas o que é errado não é a dor, não é o sofrimento, não é a privação. Eles são partes componentes do erro. Às vezes – com freqüência – eles o tornam muito, muito pior. Mas eles não são o erro fundamental.

O erro fundamental, aqui, é o sistema que nos permite ver os animais como nossos recursos- para serem comidos por nós, ou manipulados cirurgicamente, ou explorados por esporte ou dinheiro. Assim que aceitamos essa visão dos animais – como recursos nossos – o resto é tão previsível quanto lamentável. Por que preocupar-se com seu desamparo, sua dor, sua morte? Dado que os animais existem para nós, para nos beneficiar de um modo ou de outro, o que os prejudica de fato não importa – ou importa só se começar a nos aborrecer, se nos fizer sentir desconfortáveis…

No caso dos animais usados na ciência, se e de que modo aboliremos seu uso … são questões predominantemente políticas. As pessoas têm que mudar suas crenças antes de mudarem seus hábitos. Um número suficiente de pessoas, especialmente daquelas eleitas para cargos públicos, devem crer em mudanças – devem querê-las – para que tenhamos leis que protejam os direitos dos animais. Este processo de mudança é muito complicado, exige muito, é exaustivo, exige o esforço de muitas mãos na educação, publicidade, organização e atividade política, até mesmo lamber envelopes e selos. Na condição de filósofo ativo e experiente, o tipo de contribuição que posso dar é limitada, mas, gosto de pensar que ela é importante. A moeda da filosofia são as idéias – seu significado e fundamentação racional – não, digamos, as roscas e parafusos do processo legislativo, ou a mecânica da organização de uma comunidade. Isso é o que venho explorando nos últimos dez anos ou mais em meus ensaios e palestras, e mais recentemente em meu livro The Case for Animal Rights. Creio que as conclusões mais importante às quais cheguei neste livro são verdadeiras porque estão firmadas sobre os melhores argumentos. Eu creio que a idéia dos direitos animais tem a razão a seu lado, não apenas a emoção.

No espaço que aqui tenho só posso esquematizar em linhas gerais alguns elementos mais importantes do livro. Seus temas principais – não devemos nos surpreender com isso – envolvem perguntar e responder em profundidade questões de fundamentação moral sobre o que seja a moralidade, de que modo ela deveria ser entendida e qual seja, afinal, a melhor teoria moral. Espero poder passar adiante algo da forma que esta teoria adquire. A tentativa de fazer isso será (para usar uma palavra que uma vez um amigo usou para descrever meu trabalho) cerebral, talvez cerebral demais. Mas isso é enganoso. Meus sentimentos em relação ao modo pelo qual às vezes os animais são tratados fluem tão profundos e fortes quanto os dos meus voláteis compatriotas. Os filósofos têm – para usar o jargão da moda – um lado direito em seus cérebros. Se é com o lado esquerdo que contribuímos (ou na maior parte deveria ser) é porque os talentos que temos residem nele.

Como fazer? Começamos por questionar como o estatuto moral dos animais tem sido compreendido por pensadores que negam que animais tenham direitos. Então testaremos a força de suas idéias observando quanto elas resistem ao fogo da crítica justa. Se começamos a pensar deste modo, logo veremos que algumas pessoas crêem que não temos deveres diretos para com os animais, que nada devemos a eles, que nada do que fazemos em relação a eles lhes causa mal. Mais precisamente, podemos fazer coisas erradas envolvendo animais, então temos deveres relacionados com eles, mas não para com eles. Essa perspectiva pode ser chamada de perspectiva dos deveres indiretos. Para ilustrar: Suponha que seu vizinho chuta um cão seu. Seu vizinho então fez algo errado. Mas não ao seu cão. O mal feito foi a você. No fim das contas, é errado aborrecer pessoas, e o vizinho chutando seu cão aborrece você. Então, você é quem sofreu o erro, não o seu cão. Ou de outro modo: ao chutar seu cão, seu vizinho causou danos à sua propriedade. E dado que é errado danificar a propriedade alheia, seu vizinho fez algo errado – a você, é claro, não ao seu cão. Seu vizinho não causa dano a seu cão mais do que causaria a seu carro se estilhaçasse seu pára-brisa. Os deveres de seu vizinho para com o seu cão são deveres indiretos para com você. De modo mais amplo, todos os nossos deveres em relação aos animais são deveres indiretos a um outro – à humanidade.

De que modo alguém tentaria justificar essa perspectiva? Alguém pode dizer que seu cão não sente coisa alguma e, desse modo, não foi ferido pelo chute de seu vizinho, nem se preocupa com a dor, pois não sente qualquer dor, é tão inconsciente de tudo quanto o é o pára-brisa. Alguém pode dizer isso, mas nenhuma pessoa racional o fará, dado que, entre outras considerações, essa tese convidará qualquer um que a sustente a afirmar que tampouco qualquer ser humano sente dor – que seres humanos também não dão a mínima para o que lhes acontece. Uma segunda possibilidade é que, embora ambos, você e o seu cão sejam feridos quando chutados, apenas a dor humana conta. Mas, outra vez, nenhuma pessoa racional pode acreditar nisso. Dor é dor, seja lá onde ocorra. Se é por causa da dor causada que é errado seu vizinho causar-lhe dor, não podemos ignorar ou menosprezar a relevância da dor que seu cão sente.

Os filósofos que sustentam a perspectiva dos deveres indiretos – e muitos o fazem – chegam à compreensão de que devem evitar as duas falhas que acabamos de apontar: isto é, ambas as perspectivas, a de que os animais não sentem coisa alguma, tanto quanto a idéia de que somente a dor humana pode ser moralmente relevante. Entre esses pensadores o tipo de perspectiva agora adotada é uma ou outra forma do assim chamado contratualismo.

Aqui está, muito cruamente, sua idéia-raiz: a moralidade consiste num sistema de regras que os indivíduos voluntariamente aceitam obedecer, como o fazemos quando assinamos um contrato (daí o nome contratualismo). Aqueles que entendem e aceitam os termos do contrato estão diretamente cobertos; eles têm direitos criados, reconhecidos e protegidos pelo contrato. E esses contratantes podem ainda ter direitos assegurados para outros que, embora não tenham a capacidade de compreender a moralidade e assim não são capazes eles mesmos de assinar contratos, são amados ou cuidados por aqueles que podem. Assim, crianças, por exemplo, não são capazes de assinar contratos e ter direitos. Mas elas são protegidas mesmo assim pelo contrato por conta do interesse sentimental de outros, mais claramente de seus pais. Desse modo, temos então deveres em relação a essas crianças, deveres em consideração a elas, mas não deveres para com elas. Nossos deveres em seu caso são deveres indiretos a outros seres humanos, normalmente seus pais.

O mesmo vale para os animais. Dado que não podem entender contratos, eles obviamente não os podem assinar; e dado que não podem assinar, eles não têm direitos. Igual às crianças, no entanto, alguns animais são objeto de interesses sentimentais de outros. Você, por exemplo, ama seu cão ou gato. Assim, aqueles animais pelos quais um número suficiente de pessoas se preocupam (animais de companhia, baleias, foquinhas, e a águia careca americana), embora não tenham direitos por si, serão protegidos por conta do interesse sentimental das pessoas. De acordo com o contratualismo, eu não tenho, então, deveres diretos para com seu cão ou outro animal qualquer, nem mesmo o dever de não lhes causar dor ou sofrimento; meu dever de não lhes ferir é um dever que tenho para com aquelas pessoas que se preocupam com o que lhes acontece. Do mesmo modo com outros animais, onde pouco ou nenhum interesse sentimental se faz presente – no caso de animais de criação, por exemplo, ou de ratos de laboratório – os deveres que temos tornam-se cada vez mais fracos até, talvez, desaparecerem. A dor e a morte que sofrem, embora real, não são erradas, caso ninguém se incomode com isso.

Quando se trata do estatuto moral de animais, o contratualismo poderia ser uma perspectiva difícil de refutar, se fosse uma abordagem teórica adequada do estatuto moral de seres humanos. Ele não é adequado neste último sentido tampouco, o que torna a questão de sua inadequação no primeiro caso, o dos animais, amplamente controversa. Pois, consideremos: a moralidade, de acordo com a posição contratualista crua diante da qual estamos, consiste em regras que as pessoas concordam em obedecer. Quais pessoas? Bem, tantas quantas bastem para fazer a diferença – suficientes, isto é, coletivamente, para ter o poder de impor as regras estabelecidas no contrato. Isso é muito bom e certo para aqueles que assinam, mas não tão bom para aqueles que não são convidados a assinar. E não há nada, no contratualismo do tipo que estamos questionando, que garanta ou exija que qualquer um tenha chance de participar igualmente no estabelecimento das regras da moralidade. O resultado é que esta abordagem da ética pode sancionar as formas mais gritantes de injustiça social, econômica, moral e política, desde um sistema de castas repressivo até a discriminação sexual e racial sistemáticas. O poder, de acordo com essa teoria, faz o direito. Deixa que sofram as vítimas da injustiça como quiserem. Isso não importa, desde que ninguém – nenhum contratante, ou, poucos deles – se incomodem com isso. Tal teoria faz parar a respiração de qualquer um… como se, por exemplo, não houvesse nada de errado com o apartheid, na África do Sul, caso poucos sul-africanos brancos se incomodassem com ele. Uma teoria com tão pouco a ser recomendado no âmbito da ética do tratamento devido a nossos companheiros humanos, não pode ter nada de recomendável quando se trata da ética de como tratamos nossos companheiros animais.

A versão do contratualismo que acabamos de examinar é, conforme o apontei, uma variação crua, e em justiça àqueles que adotam a versão contratualista persuasiva, deve-se notar que variações muito mais refinadas, sutis e engenhosas são possíveis. Por exemplo, John Rawls, em, Uma teoria da justiça, desenvolve uma versão do contratualismo que obriga os contratantes a ignorarem traços acidentais do ser humano – por exemplo, se é negro ou branco, homem ou mulher, gênio ou com intelecto modesto. Somente ignorando tais traços, Rawls crê, podemos assegurar que os princípios da justiça com os quais os contratantes concordariam não são fundados em desvios ou preconceitos. Apesar do avanço que a perspectiva de Rawls representa em relação à forma crua do contratualismo, ela resulta deficiente: ela nega sistematicamente que tenhamos deveres diretos para com os seres humanos que não têm um sentido de justiça – crianças, por exemplo, e muitos humanos mentalmente retardados. E, ainda assim, parece razoavelmente certo que, se torturássemos uma criança ou um humano retardado, estaríamos fazendo algo que machucaria ela ou ele, não algo que seria errado se (e somente se) aborrecesse outros humanos com um senso de justiça. Se isso é verdade no caso desses humanos, não podemos racionalmente negar o mesmo no caso dos animais.

Perspectivas de deveres indiretos, incluindo as melhores delas, fracassam em ordenar nossa aprovação racional. Seja lá qual teoria ética devamos aceitar racionalmente, ela deve, no mínimo, reconhecer que temos certos deveres diretos para com os animais, exatamente como temos certos deveres diretos uns para com os outros…

Algumas pessoas pensam que a teoria que estamos buscando é a utilitarista. Um utilitarista aceita dois princípios morais. O primeiro é o da igualdade: o interesse de qualquer um conta, e interesses semelhantes devem ser considerados como tendo o mesmo peso ou importância. Branco ou negro, americanos ou iranianos, humano ou animal – a dor ou frustração de qualquer um conta, e conta exatamente tanto quanto a dor ou frustração equivalente de qualquer outro. O segundo princípio que um utilitarista aceita é o da utilidade: realizar o ato que resulta no melhor balanço entre satisfação e frustração para todos os afetados pelas conseqüências dele.

Na condição de utilitarista, então, aqui está como devo abordar a tarefa de decidir o que devo fazer moralmente: eu devo indagar àquele que será afetado, caso escolha fazer uma coisa, em vez de outra, quanto cada indivíduo será afetado, e para onde os melhores resultados provavelmente irão – qual opção, em outras palavras, é mais provável resultar nos melhores resultados, no melhor balanço entre satisfação e frustração. Esta opção, seja lá qual for, é aquela que devo escolher. É nisto que meus deveres morais consistem.

O grande apelo do utilitarismo se baseia em seu igualitarismoincondicional: o interesse de qualquer um conta tanto e tanto quanto conta o mesmo interesse de qualquer outro. O tipo de discriminação odiosa que certas formas de contratualismo justificam – discriminação baseada na raça ou sexo, por exemplo – parecem desautorizadas em princípio pelo utilitarismo, como o é o especismo, a discriminação sistemática baseada na pertinência à espécie.

A igualdade que encontramos no utilitarismo, no entanto, não é do tipo que um advogado dos direitos animais e humanos deve ter em mente. O utilitarismo não tem espaço para o direito moral igual de indivíduos diferentes, porque ele não tem espaço para seu valor inerenteigual. O que tem valor para o utilitarismo é a satisfação dos interesses de um indivíduo, não o indivíduo de quem são esses interesses.

Um universo no qual você satisfaça seu desejo de água, comida e calor é, a não ser em casos excepcionais, melhor do que um universo no qual esses desejos são frustrados. E o mesmo é verdadeiro no caso de um animal com desejos semelhantes. Mas nem você nem o animal tem qualquer valor em si mesmo. Somente suas sensações o tem.

Aqui vai uma analogia para ajudar a esclarecer filosoficamente o ponto: um copo contém líquidos diferentes, por vezes doce, por outras azedo, ou uma mistura dos dois. O que tem valor são os líquidos: o doce é melhor, o azedo é o pior. O copo, o recipiente, não tem valor. O que tem valor é o que se põe nele, não aquilo no que são colocados. Para o utilitarista, você e eu somos como o copo; nós não temos valor enquanto indivíduos, e, portanto, não temos valor igual. O que tem valor é o que vai dentro de nós, aquilo a que servimos de recipiente; nossas sensações de satisfação têm valor positivo, nossas sensações de frustração, valor negativo.

Sérios problemas se põem para o utilitarismo quando nos lembramos que ele nos convida a produzir as melhores conseqüências. O que isso quer dizer? Isso não quer dizer as melhores conseqüências só para mim, minha família, amigos, ou para qualquer outra pessoa considerada individualmente. Não, o que devemos fazer é, a grosso modo, o que segue: devemos adicionar (seja lá de que modo for!) as satisfações e frustrações separadas de cada provável indivíduo afetado por nossa escolha, as satisfações em uma coluna, as frustrações em outra. Devemos fazer a somatória de cada coluna para cada uma das opções diante de nós. Isso é o que significa dizer que a teoria é somativa. Devemos, então, escolher a opção que mais provavelmente resultará no melhor balanço entre o total de satisfações e o total de frustrações. Seja lá qual ato for que nos leve a esse resultado, este é o ato que devemos realizar – é nisso que consiste nosso dever moral. E este ato claramente pode não ser o mesmo que implica nos melhores resultados para mim pessoalmente, minha família ou amigos, ou para um animal de laboratório. As melhores conseqüências somadas as de cada um dos envolvidos não são necessariamente as melhores para cada indivíduo.

O fato de ser uma teoria somativa – as satisfações e frustrações de indivíduos diferentes são adicionadas, somadas, totalizadas – é alvo das objeções contra o utilitarismo. Tia Bea é uma pessoa idosa, inativa, excêntrica, azeda, embora não fisicamente doente. Ela prefere continuar vivendo. Além disso, é rica. Eu poderia fazer uma fortuna se pusesse as mãos em seu dinheiro, um dinheiro que ela pretende dar-me de qualquer modo, quando morrer, mas recusa-se a fazê-lo, agora. Com vistas a evitar uma alta taxa de impostos, eu planejo doar uma grande soma dos meus ganhos a um hospital infantil local. Muitas, muitas crianças serão beneficiadas com minha generosidade, e muita alegria será causada a seus pais, parentes e amigos. Se eu não ganhar logo esse dinheiro, todas essas ambições serão zeradas. Uma oportunidade única na vida de praticar uma morte real estará perdida. Por que, então, não matar a tia Bea? Oh! É claro, posso ser apanhado. Mas, não sou tolo e, além do mais, o seu médico pode ser levado a cooperar (ele está de olho no mesmo investimento e acontece que sei de uma boa sobre seu passado obscuro). O ato pode ser praticado, digamos… profissionalmente. A chance de ser apanhado é muitopequena. Por causa da minha consciência culposa, e, sendo um sujeito cheio de recursos, vou providenciar mais do que suficiente conforto – como descansar numa praia em Acapulco – imaginando a alegria e a saúde que propiciei a tantos outros.

Suponha que Tia Bea seja morta e o resto da história se passe conforme descrito. Teria eu feito algo errado? Algo imoral? Alguém pensaria que fiz. Não de acordo com o utilitarismo. Dado que o que fiz resultou no melhor balanço entre a satisfação e a frustração total de todos os afetados pelos resultados, minha ação não é errada. Na verdade, ao matar tia Bea o médico e eu fazemos o que o dever requer.

O mesmo tipo de argumento pode ser repetido em qualquer tipo de caso, ilustrando, cada vez, como o utilitarismo conduz a resultados que pessoas imparciais acham moralmente duros. É errado matar minha tia Bea a fim de produzir os melhores resultados para outros. Um bom fim não justifica um mau meio. Toda teoria moral adequada terá de explicar por que isso é assim. O utilitarismo falha nesse respeito, e assim não pode ser a teoria que buscamos.

O que fazer? Por onde recomeçar? O lugar para começar, penso, é pela perspectiva utilitarista do valor do indivíduo – ou, melhor, pela falta de valor. Em seu lugar, supondo que consideremos que você e eu, por exemplo, temos valor enquanto indivíduos – o denominaremos valor inerente. Dizer que temos tal valor é dizer que somos algo mais do que, e diferentes de, meros recipientes. Além do mais, para assegurar que não preparamos o caminho para tais injustiças, tais quais escravidão ou discriminação sexual, temos de acreditar que todos os que têm valor inerente o têm igualmente, independentemente de seu sexo, raça, religião, lugar de nascimento, e assim por diante. Do mesmo modo, serão descartados como irrelevantes os dados sobre talentos, dons, habilidades, inteligência e posses, personalidade ou doenças, se é amado ou admirado, desprezado ou ridicularizado. O gênio e a criança retardada, o príncipe e o pobre, o neurocirurgião e o vendedor de frutas, madre Teresa e o mais inescrupuloso vendedor de carros usados – todos têm valor inerente, todos o possuem igualmente, e todos têm um direito igual de serem tratados com respeito, de serem tratados de modo que não os reduza ao estatuto de coisas, daquilo que existe como recursos para os outros. Meu valor enquanto indivíduo independe de minha utilidade para você. O seu não depende de sua utilidade para mim. Para qualquer um de nós, tratar o outro de modo que indique falta de respeito pelo valor independente do outro, é agir imoralmente, violar os direitos individuais.

Algumas das virtudes racionais desta perspectiva – que denomino a perspectiva dos direitos – deveriam ser evidentes. Diversamente do contratualismo (rude), por exemplo, a perspectiva dos direitos, em princípio, nega a tolerância moral de toda e qualquer forma de discriminação racial, sexual ou social; e, diversamente do utilitarismo, essa perspectiva, em princípio, nega que possamos justificar bons resultados usando maus meios que violam os direitos de um indivíduo – nega, por exemplo, que possa ser moral matar tia Bea para colher resultados benéficos para outros. Isso seria aprovar tratamento desrespeitoso a indivíduos em nome do bem social, algo que a perspectiva dos direitos – categoricamente – jamais permitirá.

A perspectiva dos direitos, creio, é racionalmente a teoria moral mais satisfatória. Ela supera todas as outras teorias, na medida em que ilumina e explica o fundamento de nossos deveres uns para com os outros – o domínio da moralidade. Nesse marco ela tem as melhores razões e os melhores argumentos do seu lado. É claro, se fosse possível mostrar que somente seres humanos estão incluídos em seu âmbito, então uma pessoa como eu, que acredita nos direitos animais, teria que olhar para outro lugar.

Mas, tentativas para limitar seu âmbito apenas a humanos só podem mostrar-se fracassadas racionalmente. Os animais, é verdade, são destituídos de muitas habilidades possuídas pelos humanos. Eles não podem ler, fazer matemática avançada, construir uma estante ou fazer baga ghanoush. Nem o podem muitos humanos, no entanto, e ainda assim nós não dizemos (nem o deveríamos) que eles (esses humanos) então têm menos valor inerente, que eles têm menos direito do que outros de serem tratados com respeito. É a semelhançaentre aqueles humanos que mais claramente sem controvérsia têm tal valor (as pessoas lendo isto, por exemplo), não nossas diferenças, o que mais importa. E a semelhança básica verdadeiramente crucial é simplesmente esta: nós somos, cada um, o sujeito da experiência de uma vida, uma criatura consciente com um bem-estar individual que tem importância para nós, mesmo que não sejamos úteis para os outros. Nós queremos e preferimos coisas, cremos e sentimos coisas, buscamos e esperamos coisas. E todas essas dimensões de nossa vida, inclusive nosso prazer e dor, nossa alegria e sofrimento, nossa satisfação e frustração, nossa existência continuada e nossa morte imprevisível – tudo isso faz uma diferença para a qualidade de nossa vida vivida, experienciada por nós enquanto indivíduos. O mesmo é verdadeiro no que diz respeito aos animais, com os quais nos preocupamos… eles também devem ser vistos como sujeitos experimentando uma vida com valor inerente próprio.

Há quem resista à idéia de que animais têm valor inerente. “Só humanos têm tal valor”, declaram. Como se pode defender esta concepção estreita? Devemos dizer que só humanos têm os requisitos inteligência, ou autonomia, ou razão? Mas há muitos, muitos humanos que não conseguem alcançar esses padrões e ainda assim são vistos razoavelmente como tendo valor acima e para além de sua utilidade para outros. Deveríamos afirmar que somente humanos pertencem à espécie certa, a espécie Homo sapiens? Mas isto é especismo flagrante. Será dito, então, que todos e – somente – humanos têm alma imortal? Então nossos oponentes acabam de suspender seu trabalho por conta própria.

Eu mesmo não sou francamente favorável à proposição de que há almas imortais. Pessoalmente, desejo profundamente que eu tenha uma. Mas não desejo sustentar minha posição numa matéria ética controversa, sobre outra questão, ainda mais controversa: sobre quem, ou o que, tem alma imortal. Isso é cavar o buraco ainda mais profundamente, não escalá-lo. Racionalmente, é melhor resolver questões morais sem fazer afirmações mais controversas do que o necessário. A questão de quem tem valor inerente é uma dessas questões, uma questão que é resolvida mais racionalmente sem a introdução da idéia da alma imortal, do que usando-a.

Bem, talvez alguns dirão que animais têm algum valor inerente, apenas menor do que o nosso. Outra vez, no entanto, tentativas de defesa dessa visão podem mostrar-se deficientes em sua justificação racional. Qual poderia ser a base para termos mais valor inerente do que os animais? Sua falta de razão, autonomia ou intelecto? Só se estivermos dispostos a fazer o mesmo juízo no caso de humanos que são similarmente deficientes. Mas não é verdade que tais humanos – as crianças retardadas, por exemplo, ou os mentalmente perturbados – têm menos valor inerente do que você ou eu. Tampouco, então, podemos sustentar racionalmente a concepção de que os animais, sendo, como eles o são, sujeitos que experienciam uma vida, têm menor valor inerente. Todos que têm valor inerenteo têm igualmente, sejam animais humanos, ou não.

O valor inerente pertence, então, igualmente, a todos os que são sujeitos de uma vida. Se pertencem a outros – a pedras e rios, árvores e geleiras, por exemplo – não sabemos nem nunca podemos saber. Mas, nem precisamos saber, se queremos tratar do caso dos direitos animais. Não precisamos saber, por exemplo, quantas pessoas estão aptas a votar nas próximas eleições presidenciais, antes de poder saber se eu estou. Do mesmo modo, não precisamos saber quantos indivíduos têm valor inerente, antes de saber que alguns o têm. Quando se trata do caso dos direitos animais, então, o que precisamos saber é se, por exemplo, os animais que em nossa cultura são rotineiramente comidos, caçados e usados em nossos laboratórios são, como nós, sujeitos de uma vida. E isso nós sabemos. Sabemos que muitos – literalmente bilhões e bilhões – desses animais são sujeitos de uma vida, no sentido explanado, e, desse modo, têm valor inerente, caso o tenhamos. E desde que, de modo a alcançar a melhor teoria dos nossos deveres uns para com os outros, temos de reconhecer nosso valor inerente igual, enquanto indivíduos, a razão – não os sentimentos, não as emoções – a razão nos força a reconhecer o valor inerente igual desses animais e, com isso, seu direito igual de serem tratados com respeito.

Esta é – muitocruamente, a forma e o sentir do caso em favor dos direitos animais. A maior parte dos detalhes do argumento de sustentação não está aqui. Eles podem ser encontrados no livro que referi antes. Aqui os detalhes não aparecem, e eu devo, ao focá-los, limitar-me a quatro pontos finais.

O primeiro é mostrar como a teoria subjacente ao caso da defesa de direitos animais mostra que o movimento pelos direitos animais é parte do, não contrário ao, movimento pelos direitos humanos. A teoria que sustenta racionalmente os direitos animais também sustenta os direitos humanos. Assim, aqueles envolvidos no movimento de direitos animais são parceiros na luta para garantir respeito aos direitos humanos – os direitos das mulheres, por exemplo, ou das minorias, ou dos trabalhadores. O movimento dos direitos animais é recortado do mesmo pano daqueles.

O segundo, tendo exposto os traços gerais da concepção dos direitos, agora posso dizer como suas implicações para a … ciência, entre outras áreas, são ao mesmo tempo claras e inaceitáveis. No caso do uso de animais na ciência, a concepção dos direitos é categoricamente abolicionista. Animais de laboratório não são nossos provadores; nós não somos seus reis. Por serem esses animais tratados rotineira e sistematicamente como se seu valor fosse redutível à sua instrumentalidade para outros, eles são rotineira e sistematicamente violentados. Isso é tão verdadeiro, quando simplesmente usados em pesquisas repetidas, desnecessárias ou estúpidas, quanto o é, quando usados naquelas que sustentam uma promessa real de benefício humano. Não podemos justificar ferir ou matar um ser humano (minha tia Bea, por exemplo) apenas por esse tipo de razão. Tampouco podemos fazer isso, mesmo no caso de uma criatura tão pequena quanto um rato de laboratório. O que se exige não é apenas refinamento ou redução, gaiolas maiores e mais limpas, uso mais generoso de anestesia ou eliminação de cirurgias múltiplas, não apenas ajustamento do sistema. É substituição completa. O melhor que podemos fazer quando se trata do uso de animais em ciência é – não usá-los. É aí que se encontram nossos deveres, de acordo com a visão dos direitos…

Meus dois últimos pontos são sobre filosofia, minha profissão. Ela não é, quase obviamente, um substitutivo para a ação política. As palavras que escrevi aqui e em outros lugares, por si mesmas, não mudam a coisa. É o que fazemos com nosso pensamento expresso pelas palavras – nossos atos, nossos feitos – que mudam as coisas. Tudo o que a filosofia pode fazer e tudo o que tentei é oferecer uma visão do que nossos feitos deveriam visar. E do por que. Mas não do como.

Finalmente, lembro da crítica compenetrada, feita por aquele que mencionei antes, que me acusava de ser cerebral demais. Bem, tenho sido cerebral: concepções dos deveres indiretos, do utilitarismo, do contratualismo – dificilmente evocam paixões. Me vem também à lembrança, no entanto, uma imagem que uma vez um outro amigo me colocou – a imagem de uma bailarina como expressão de uma paixão disciplinada. Longas horas de suor e labuta, de solidão e exercício, de dúvida e fadiga: essas são as disciplinas de sua arte. Mas, a paixão também está lá, a obstinação pela excelência em falar através de seu corpo, para fazer isso corretamente, para penetrar nossas mentes. Essa é a imagem da filosofia que deixo para vocês, não de “cerebral demais”, mas de disciplinada paixão. Da disciplina já foi visto que chega. Quanto à paixão: por vezes, e não raramente, lágrimas me vêm aos olhos ao ver, ler ou ouvir sobre a condição de desgraça na qual os animais se encontram nas mãos dos humanos. Sua dor, seu sofrimento, sua solidão, sua inocência, sua morte. Cólera. Fúria. Pena. Pesar. Desgosto. A criação inteira geme sob o peso do mal que nós humanos infligimos a essas criaturas mudas e impotentes. Sãonossos corações, não apenas nossas cabeças, que clamam por um fim a tudo isso, que exigem de nós que superemos, por eles, os hábitos e forças por detrás da opressão sistemática que sofrem. Todos os grandes movimentos, está escrito, passam por três momentos: ridicularização, debate e adoção. É a realização deste terceiro estágio, adoção, que requer de nós, tanto paixão quanto disciplina, nossos corações e nossas cabeças. O destino dos animais está em nossas mãos. Que Deus nos dê igual grandeza, para que possamos estar à altura da tarefa.

[Nota da tradutora: Este artigo foi publicado por Tom Regan pela primeira vez na coletânea, In Defence of Animals, organizada por Peter Singer em 1985, e editada pela Basil Blackwell, de Oxford. Para a presente tradução usei a versão publica por Robert M. e Stuart E. ROSENBAUM, em sua coletânea, Animal Experimentation; the moral issues. Amherst, NY: Prometheus Books, 1991, p. 77-88]

Tom Regan - Filósofo especializado na teoria dos direitos dos animais. É Professor Emérito de Filosofia da Universidade da Carolina do Norte, onde ele lecionou desde 1967 até sua aposentadoria em 2001. Ativista dos direitos dos animais, publicou, entre outros The Case for Animal Rights e Animal Rights and Human Obligations (organizado juntamente com Peter Singer). Jaulas Vazias é seu primeiro livro publicado no Brasil.

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